sábado, 5 de dezembro de 2009

O nosso castelo




Cachos louros e pequenos, pele branca, bala na boca. Medo de escuro, cara-de-banana, perna machucada, lágrima no canto do olho, sorriso depois. Meu pai é meu herói, minha mãe é a mais alta de todas, cadê meu presente de Natal? Rolar no tapete, brincar de bafo lá embaixo, bicicleta de rodinhas, tranças no cabelo, mãos gorduchas, Rio de Janeiro, quando crescer vou ser minha irmã, me deixa andar de bicicleta mais um pouquinho? Choro, biquinho, sorriso.

Meu pai foi trabalhar com o carro preto, Xuxa na TV, Nescau com leite em pó, solidão, amigo de mentira, gente subindo, gente descendo, meu vestido xadrez ficou pequeno, xuxinhas de rabicó, banho frio no rio Jenipapo, não quero ir para a escola amanhã. Você tem que ir. Escola chata, gente chata, quero ir embora daqui.

Choro, desespero, falta de ar, perfume forte, garganta presa, minha mãe, minha casa, meu quarto, minhas bonecas. Não preciso de escola, eu aprendo sozinha. L + A é LA. Quando é que meu pai volta? Volta de noite. Meu pai já chegou? Já chegou? Já chegou? Não chegou. Sono leve, porta aberta, cansaço, vontade de fazer xixi, me leva lá fora? Porque nosso banheiro não tem pia? Meu pai é o maior de todos.

Cachos castanhos, médios, pele morena clara, Salvador, essa é a nossa caçulinha, lembra dela? Ela não era loira? Vem cá, deixa eu te dar um cheiro. Vovó, minha vó. Praça Castro Alves, postes ladeira a baixo, você não pode ir lá, venha pra dentro. Seu Vavá, gente que entra, gente que sai, bar na esquina, sacos pelo chão, muambeiro, o que é isso? São Marcos, tios, tias, esse é seu primo. Minha vó tem cabelo branco e curto agora, ela está doente. Saída com minha vó, taxi, hospital, fica com ela um pouquinho, Ju? 6 anos, sorriso tímido.

Minha mãe está chorando, minha vó morreu. Posso deitar aqui com você, mãe? Não briga comigo, eu durmo com você. Cinema Itaguary, homem morrendo na calçada, ele foi atropelado, não olha, isso é cidade grande, minha filha. Ninguém quer brincar comigo só porque sou pequena. Reunião de filhos e mãe, a vida vai mudar, nós vamos sair daqui. Mesma escola, cada de vô, primos, praia, futebol. Televisão e pipoca, cachorro quente com coca cola. Surpresas da vida, corrida pra casa, Nilmara, Nilmar, amigos queridos. A vida vai mudar de novo, seu pai está doente. Hospital, provas, medo, medo, enfermaria, úlcera, ferida, não vai sarar, meu pai vai morrer. Minha mãe está chorando pela segunda vez, ela só chora quando alguém morre. Meu pai morreu?

Casa, escola, meu pai não morreu. Conversa séria, choro de criança, medo, medo. O que vamos fazer? Você vai estudar em um colégio interno. Meu pai voltou, aniversário, ele tá magro, deixa eu ver a cicatriz também? A vida vai mudar de novo. Precisamos sair desse estresse, vamos para o interior. Compramos uma casa linda. As janelas são redondas como castelo o de Cinderela, você vai brincar de pega-pega, ter cachorro, um quarto enorme, vai pular cerca, comer um montão de frutas.

Aquela é a casa. Cadê? Tem escada, ali vai ser o jardim, não tem piso, não tem vidro nas janelas. Onde é o banheiro? É aquele quartinho ali, vai ser um banheiro de princesa. Tem buraco de bichinho no chão, morimbundo preto, não tem TV. Cama de pedra, vento frio de noite, vamos acampar aqui.

Que casa é essa? É o nosso castelo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Passarei sempre que possível por aqui.
Forte abraço!